sábado, outubro 28, 2006

A previsibilidade

Num daqueles momentos em que os velhinhos do nosso país são arrebanhados em autocarros até aos comícios dos partidos, lembro-me de ouvir ufano o Jorge Coelho, na altura em que ele era mais anafadinho, a afirmar:

«-Eu [ele] posso ter muitos defeitos [hãhã] mas uma coisa é que eu não sou!!! [hmmm... de esquerda?]
-Eu não sou ingénuo!!! [isto ele repetiu várias vezes subindo o tom de voz - o que deve ter aprendido naqueles livros sobre como falar em público]»

Eu que nunca tinha pensado que a ingenuidade pudesse ser um defeito fiquei um pouco perplexo com a minha própria (agora tenho que cometer um pleonasmo) ingenuidade.

Ora a previsibilidade, tal como a ingenuidade, não me parece que seja defeito e em em muitas coisas eu aprecio que @s meus/minhas amig@s sejam previsíveis. Pensemos, sei lá, na questão de certas escolhas que as pessoas fazem na vida.

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| eu já abortei | figueira da foz | camara de lobos | 2005 |

A sério que é a brincar.

Ficava ali a tarde toda, em biquinhos de pés, em cima do passeio, fazendo um esforço tremendo para que o ombro da senhora da frente não a incomodasse no momento em que passava a vedeta televisiva da novela brasileira da noite. Passava o corso, passavam adolescentes imberbes que fingiam gostar de dançar um samba pré-formatado - coisa que provavelmente nunca mais fariam em dias da sua vida -, passavam carros alegóricos com sátiras chochas-, passavam os casais de meia idade com as roupas tradicionais - com o tradicional cheiro a naftalina-, passavam as crianças vestidas de zorro ou de fada ou de homem aranha ou de princesa ou de polícia ou de enfermeira...

Não se pode dizer que aquilo fosse uma grande seca, até porque é sempre engraçado fugir à rotina. O problema era mesmo aquela sensação pesada nas pernas ao fim do dia, as dores nas palmas dos pés e o formigueiro no lombo. Juntava-se a tudo isso a lembrança de que desde os seus 31 anos já não tinha sexo digno desse nome e todos os gajos que lhe apareciam à frente eram umas abantesmas com tiques possidónios, mas sobretudo sem qualquer jeitinho para as palavras - coisa que para ela sempre foi determinante naqueles momentos leves de roupa no lusco-fusco do sofá da sala.

Normalmente lá no emprego sempre lhe davam a terça-feira e ela, como numa romaria, punha-se a caminho do sul com uma companhia de circunstância. Picou o ponto em todo o lado. Estarreja, Ovar, Torres Vedras, Nazaré e até Loulé... Sentia-se envelhecer de ano para ano.

Um ano tudo mudou. Através daquelas modernices do HI5, encontrou meia dúzia de amigos do secundário e embicou com eles para norte. As festas eram muito mais pequenas, mas como não era preciso ficar toda a tarde no passeio em pé, as pernas não doíam, nem as costas ficavam maçadas. Mas o melhor de tudo era que quando se enrolava com um galego bastava-lhe aquela entoação rústica das palavras para que a passagem do lusco-fusco da sala para a escuridão do quarto fosse sempre um percurso memorável.




| 8 pessoas importantes | contar como se se contassem os três mosqueteiros | xinzo de limia | entrudo ou carnaval ou entroido ou o carago | fevereiro 2006 |

segunda-feira, outubro 16, 2006

Saiba Sr. Presidente

Apesar de o meu corpo estar aqui agora, a minoritária inteligência que tenho ficou por ali a ocupar o Rivoli.

Adenda de dia 18.


| Ocupação pacífica do Rivoli | Rua do Dr. Magalhães Lemos | Porto | 16 de Outubro de 2006 |

terça-feira, outubro 10, 2006

Problemas de indexação linguística em motores de pesquisa :|

Aquela forma de falar da Sé era inconfundível e ouvia-o repetir com voz rouca conversas intermináveis cheias de expressões como: "desbaziar o lixo"; "tótil pessoal"; "afiambrar-me à gaja"; "não m'acredito"; "o géco parecia uma obeilha"; "o artolas era um grande pastor", "dei-lhe um biqueiro"; "oh p'as! é côro..."; "o moina deu de frosques" e evidentemente as frases acabavam sempre com um grande "que carago, fuogo, tás a ber a ideia?"

O divertido da questão era que o outro tipo, com aquele sotaque suave típico da cidade de Ponta Delgada, respondia divertido: "esse rapá nã é descréto"; "que corisco zabela"; "isse aí tá d'ardê..."; "tã riquinhe"; "fogo t'abraze"; "eu vou-te sofrê?".

A conversa não era bem uma conversa de surdos mas o problema maior era mesmo o da compreensão mútua. Enfim, ao fim do terceiro licor de maracujá do Ezequiel, aviado a meias com o licor de medronho da Micas lá de cima, não era tanto o conteúdo que importava. Um dia de manhã - o pormenor da manhã é fundamental - pensaram que talvez fosse altura de deslocarem a sua forma de expressão para um terreno comum. Puseram-se a falar em brasileiro de novela um com outro. A grande vantagem é que já não precisavam de se enfrascar para rirem como uns perdidos.


| PJV & SV | Porto | Novembro de 2005 |

sexta-feira, outubro 06, 2006

Isto não é um travelling journal.

Isto é um caderno feito por pessoas e não por people.
Isto é um caderno que tem desenhos e não drawings.
Isto é um caderno com fotografias e não pictures.
Isto é um caderno onde se escreve e onde não se encontram writings.
Isto é um caderno onde cada um faz o que lhe dá na real gana – o que não pode ser traduzido para estrangeiro.
Já o virei de pernas para o ar, já o folheei de trás para a frente, já o cocei com a ponta do dedo mindinho, já o observei a contraluz, já o cheirei de olhos fechados. Cheguei sempre à mesma conclusão. Isto é um caderno, não é um travelling journal.


| os peliqueiros de laza | entroido | entrudo | galiza | fevereiro de 2006 |