sexta-feira, março 31, 2017

As asinhas ficaram em casa.

Esta manhã, na habitual tragédia viária em que se transformaram as ruas de Bruxelas, à saída de um cruzamento, um carro aguarda a sua vez para poder entrar na rue de la Loi. Atrás dele outro carro. À frente dele outro carro. Atrás daquele outro carro, um autocarro e lá dentro um motorista poeta. Ou não exactamente, antes poeta-melómano.

Aquele tempo de espera na bicha, aquele compasso lento e doentio é algo que é mais do que expectável. É um fado diário. Sentado no seu posto de trabalho, o motorista sabe o que o espera: semáforos verdes e viaturas com um único ocupante. E tempos de espera.

Ainda assim, perante tudo aquilo o motorista decide tocar a corneta do autocarro. Impávidos os carros não reagem. Mas na sua cabeça o motorista imaginou que aquela corneta soaria para os peões que pedonavam como se fosse o último álbum da Enya e não como aquilo a que soou: o barulho de uma besta atrás de um volante.

Mas imaginou ainda melhor: lentamente e ao som da música, asas ligeiras, leves, claras e felpudas, abrir-se-iam lentamente dos lados de cada um dos automóveis à sua frente, permitindo assim que a rue de la Loi se transformasse no habitat de bandos de pássaros futuristas transportando formiguinhas a caminho das suas 8 horas diárias. A música tocando continuamente enquanto o fluído avícola o libertava da pena de conduzir diariamente, sob uma nunca nomeada tortura, aquela pequena máquina chamada autocarro.

Ninguém lhe enfiou uma bofetada nas ventas. Bastou que o semáforo voltasse a ficar de novo vermelho.

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