quarta-feira, abril 26, 2006

O vinho e a cidade.

Repara que não há grande coisa a discutir. Imagina que o teu objectivo é apenas parar o funcionamento da cidade. É muito mais eficaz pegares no Fiat Uno da minha mãe, chegar de manhã à faixa da direita da ponte da Arrábida, provocar uma avaria, ligar os quatro piscas e deixá-lo por ali durante uma boa hora e meia até chegar um reboque qualquer. Entretanto outro manguela estaria simultaneamente a fazer o mesmo, digamos, por baixo do túnel da rotunda dos Produtos Estrela. Não tenho dúvidas que a cidade parava.

Agora pensa numa garrafa de vinho pousada na tua mesa. Encontraste-a na garrafeira do teu tio, poucos dias depois de ele ter sido preso por causa de uma cena qualquer com facturas e cheques pré-datados. É uma garrafa sem rótulo. Ao lado dessa está uma segunda garrafa - essa com rótulo. Diz o rótulo que o líquido no seu interior tem um sabor redondo e cheiro a compota. Repara que não há grande coisa a discutir.

Imaginemos agora que a coisa se coloca neste plano: qual das garrafas escolherias para juntar ao depósito de combustível do Fiat Uno da minha mãe?


| Ti João Taberneiro | algures no concelho de Vinhais | Fevereiro de 1995 |

quarta-feira, abril 19, 2006

Apagando um por um até que não reste nada.

Primeiro é preciso o programa. Saca-se para o disco, instala-se, carrega-se umas tantas vezes no botão "próximo", responde-se que "sim" a uma pergunta qualquer e está pronto.

É então que se pode começar a pegar nalguns blogues. Neste caso não interessa verdadeiramente fazer a agregação daqueles com os quais simpatizamos. Esses ficam para depois. Escolhem-se os blogues em função dos seus defeitos. É fácil descobri-los. Depois agrupam-se em categorias: empertigados, idiotas chapados, miúdas por desmamar, potes de testosterona, famosos com mania, tipos com a mania que são famosos, fedelhos em bicos dos pés, fotógrafos de telemóvel, tudo, tudo, tudo... Algumas destas características cruzam-se, mas isso não é determinante neste processo.

Espera-se um ou dois minutos. O ecran vai-se enchendo com posts, escritos, declarações pomposas, comentários irrelevantes, opiniões bacocas, literatura coxa, política de sala de bilhar, lixo, lixo, lixo...

Com deleite observa-se todo o amontoado. O programa diz-nos que são 1426 posts. Organizados. Classificados.

É então que se começa a carregar no botão de "delete". Fica por baixo do "insert" e ao lado do "end". Em menos de um fósforo não resta nada. E fica a sensação de alívio. Conseguimos limpar a blogosfera.

Para quem não percebe a utilidade do xml, creio que este não é o exemplo adequado. No fundo a blogosfera serve para isto mesmo. Para nada.

Delete. Deleite.


| EuroPride | Paris | 20 de Junho de 1998 |

quinta-feira, abril 06, 2006

Quando saires, fecha a porta.

Enquanto durmo entras em casa. Com o indicador empurras a porta da cozinha que se abre lentamente. Os trapos por trás da banca. O pano da louça caído distraidamente num sítio qualquer do balcão. Enches o peito de ar. Na sala os sapatos esquecidos. Serão relembrados no dia seguinte - por isso os mudas de sítio e sorris. A casa atravessa-se em menos de nada. Todas as portas estão abertas à tua espera.
Quase uma dúzia de livros nas mesinhas de cabeceira e um estore aberto. Sim. Quando sozinho durmo muitas vezes com o estore aberto. Espreitas lá para fora e vês a chuva cair nos carros. Ninguém os roubou esta noite, nem na anterior, nem na próxima. Pensas nas obsessões da vizinhança por uns momentos, encolhes os ombros e olhas para mim de novo. Babo-me durante o sono. Apagas a aparelhagem. Sim quando sozinho durmo muitas vezes com música.

Sais de novo de mansinho. De manhã ainda sinto a tua presença, mas se me perguntarem, terei que responder a verdade. Nunca te vi.


| De nariz empinado | Marvão | Fevereiro de 2003 |

quarta-feira, abril 05, 2006

Tomaremos de assalto as salas de todas as casas.

Não há pressupostos. Partimos de certezas absolutas. Na nossa organização devem as bases ser demitidas. Todas as estruturas devem ser ocupadas, demitidas, expurgadas, repovoadas e finalmente recriadas. Devemos promover organizativamente a cultura do golpe de estado. Ninguém assinará este manifesto pois ele foi escrito para não ser posto em prática.

Ponto octagésimo sétimo:
-Não haverá pontos um. As simplificações da realidade são uma degenerescência.
Ponto centésimo segundo:
-Tomaremos a direcção como um fenómeno temporal transitório. Com ela não nos preocuparemos.
Ponto duocentésimo vigésimo terceiro:
-Nas listas de moradas alteraremos os números das portas de todos os aderentes. Desta forma garantiremos que pelo menos novas pessoas lerão as convocatórias. Isso não alterará nada uma vez que já actualmente ninguém responde às mesmas.
Ponto vigésimo oitavo:
-Não respeitaremos a ordem. Nem nos pontos do manifesto.
Ponto décimo sexto:
-Nas listas de contactos por telemóvel somaremos três a todos os penúltimos dígitos. As mensagens passarão a ter insinuações levemente namoriscadeiras. Isso não alterará nada uma vez que já actualmente ninguém responde às mesmas. Mas aumentará o nível de auto-confiança do país.
Ponto sexagésimo nono:
-As reuniões terão qualquer ordem de trabalhos. Isso é irrelevante. Em todas elas o poder será tomado com música. Nos golpes de estado em que eu participe ela será preponderantemente francófona.
Ponto heptacentésimo trigésimo quinto:
-Todas as decisões devem ser tomadas. Todas as resoluções devem ser escritas. Todas as ocupações devem ser convocadas. Todas as greves devem ser festivas. Todas as ruas devem ser pintadas. Todos os militantes devem ser despidos. Todas as salas devem ser ocupadas. Nas televisões apenas uma mira técnica com o custo da factura mensal da TV Cabo.
Ponto penúltimo:
-Neste ecran onde lês isto deverás assinar na linha respectiva.
Ponto último.
-Usa caneta de feltro.

Assina:

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| Aos saltos baixos | Montreal | Setembro de 2004 |

segunda-feira, abril 03, 2006

Não sei se te beije, não sei se te bata.

É um anúncio urbanístico premonitório. Vindo de automóvel do norte, entra-se em Nápoles pelo Sul. A cidade explica-se por si só desta forma. As cidades têm a sua personalidade própria e aquelas que são difíceis de explicar são-o porque são também difíceis de compreender. Assim que se entra na Piazza Giuseppe Garibaldi em plena hora de ponta, a cidade anuncia-se e explica-se. Não há carros em Nápoles que estejam impecáveis. Todos estão riscados, batidos, amolgados, amassados. Em paralelo percebe-se que um semáforo verde é uma indicação para avançar, mas o vermelho é apenas uma indicação para abrandar. As passadeiras são objectos decorativos e os passeios são a melhor forma das motorizadas escaparam ao trânsito do fim do dia. Provavelmente tudo isto são factos não correlacionados.

Meter num mesmo centro histórico, lado-a-lado, as ruas requintadas de Paris e as ruelas da Sé do Porto é uma coisa desconcertante. Mas mais desconcertante é entrar numa qualquer igreja e ver rapazes e raparigas com 16, 18 anos à espera para se confessarem. Desconcertante apenas porque com essa idade é natural que não tenham carta de condução. Pensando melhor, talvez por isso o façam...


| Portugal não tem nada a esconder | Linhares | Janeiro de 2004 |