quarta-feira, dezembro 21, 2005

Contador Mágico

Imagino a porta do meu prédio com um contador de visitas. De visitas apenas, nada de contabilizar os habitantes. Ou os meus sapatos com um contador de passos. Mas com a capacidade de ignorar o bater nervoso do pé na paragem do autocarro. Ou contadores de radioactividade natural distribuídos estrategicamente pelo granito da cidade. Ou um contador de água, luz e telefone, capaz de ao mesmo tempo contar a o ar, a escuridão e o email. Um 6 em 1.

Um contador é, por definição, uma coisa bastante imbecil. Conto os meus dedos e confirmo-o.


|S. Bartolomeu do Mar | Agosto de 2005 |

quarta-feira, dezembro 14, 2005

Não estou para o aturar.

Ao abrir a porta, o Sr. Alves encontrou com surpresa uma pequena festa de despedida dos seus colegas de trabalho. Ali estavam todos. Mesmo os mais rudes, neste fim de tarde sorriam, como se disso dependesse a memória agradável que ele guardaria do emprego, durante toda a reforma. Ficou surpreso e em certa medida satisfeito. A dada altura, já após os primeiros comes e bebes, sr. director começou a tecer considerações sobre a importância da dedicação dos trabalhadores, da sua entrega à empresa. Ventura pensou nos seus 584,32€ de reforma e no Mercedes do sr. director. Pediu a palavra e disse sorrindo: «Sabe sr. director, ao fim de 40 anos, de 8 directores e de 3 locais de trabalho, e uma vez que vou para a reforma, até podia dizer que já não estou para o aturar». Após a gargalhada geral apenas duas pessoas souberam que aquelas palavras eram sentidas. O sr. director lembrar-se-á delas no seu leito, momentos antes da morte e isso será uma das poucas coisas que partilhará com o sr. Alves.


| N | na Sede | Gaia | Novembro de 2005 |

sábado, dezembro 10, 2005

Sonho de uma noite de S. João

Talvez não saberás que fiz, este ano, trinta anos. Não é que seja significativo por si só. Mas é suficiente para que não me recorde de quando foi a primeira vez que votei. Seria fácil descobri-lo, mas não é isso o que me atormenta hoje. Esta noite tornou-se claro que nunca em toda a minha vida pude votar em ti. Teria-o feito sem hesitar, como o farei em Janeiro. Não que isso seja sequer para mim algum fetiche particular. Nada que transcenda a natureza material das pessoas. Nós somos só pessoas. Só todos juntos é que somos outras coisas que não só pessoas.
Quero-te transmitir um pouco mais do que um abraço, tal como recordo ter-te dado em 1999. Na mesma praça da Batalha por onde passo todos os dias. Agora à noite, porque de dia só lá vou para trabalhar. Como se à noite tivéssemos uma liberdade de falar que se perde nas normas do quotidiano. Onde não nos podemos abraçar. Ou onde não nos vamos encontrar por não ser aquele o nosso país. Nessa noite sabia que só podia dar o meu abraço, como já tinha dado tantas vezes os meus braços. Não poderia dar o meu voto. Não que isso seja para mim um fetiche particular, repito-o. Os votos são papelitos que se metem numa frincha.
Esta noite, hoje, quero abraçar-te daqui do Porto. Depois de tantos anos em que passei a imaginar um país onde de dia se pudesse viver como se vive à noite, onde as palavras se digam como se as pudessemos dizer como as sentimos, onde os abraços possam surgir com mais naturalidade que os comentários de circunstância sobre o estado do tempo.
Há para aí um tipo medíocre, ainda que não pareça, que pensava que podia aparecer, fazer meia dúzia de comentários sobre o estado do tempo e comer-nos a todos de cebolada. Como um zombie, já derrotado nas eleições, mas que ainda mal morto esbraceja para morder o último pescoço do último português lúcido. Tenho a certeza que há neste país milhares de pessoas que, com todo o gosto, o contrariariam, o denunciariam e em desespero talvez até o achincalhariam. Nenhuma dessas pessoas o poderia certamente abraçar, como eu não seria capaz sequer de lhe tocar.
A ti te agradeço por entre tantos milhares de portugueses, teres sido capaz de, numa noite fria, vestires aquele blazer castanho horrível, e te teres disposto a apertar-lhe a mão só para lhe dizeres nas ventas que os portugueses não precisam de palmadinhas nas costas dos banqueiros, dos srs. drs professores de finanças e de toda a sua infinita sapiência de funcionários administrativos medíocres.
Devo dizer-te no entanto que falaste menos 9 segundos do que o zombie. É uma regra de sucesso que poderás usar em debates futuros. Um zombie pode esbracejar sempre muito. Os zombies, é sabido, são sempre muitos e parece sempre que não há esperança para quem não foi mordido. Mesmo num filme de terror há que manter alguma calma de espírito. Os zombies são coisas que podem ser vencidas por qualquer um de nós. Tenhamos todos essa lucidez.

Em ti votarei pela primeira vez na vida. Com toda a gana.
Um abraço sentido,


| S. João | 23 de Junho de 2005 | Av. dos Aliados |

quinta-feira, dezembro 08, 2005

Diga 33

01 Sentei-me em frente a uma máquina para que ela me ensinasse a contar. Trinta e três linhas, pedi-lhe. Como são contadas 33 linhas? - perguntou-me.
02 De cima para baixo, incrementas o contador após cada carriage return. Ok? Comecemos então.
03 Nasceu há trinta e três anos um fedelho. Há quase trinta e três anos - porque hoje ainda não é o dia.
04 Chamaram-lhe Luis. Ponderaram longamente. Um nome determina uma vida. Que o diga D. Luis príncipe herdeiro - que se quilhou bem quilhado a bem da nação. Não dispersemos. Faltam vinte e nove linhas.
05 O fedelho passou de fedelho a puto, de puto a ganapo, de ganapo a rapazola, de rapazola a manfio e de manfio a gajo.
06 Um nome é no entanto apenas um nome. Um dia o gajo acorda e manda passear o nome. Nada de pessoal com os pais. Por uma questão meramente poética.
07 Luis é vulgar. Aniceto apela aos hegrégios avós. Os nomes são cartões de visita.
08 Um gajo passa de gajo a deus. Como se tivesse feito uma mudança de sexo num hospital secreto da CIA. Mudar de nome permite aos mortais viver duas vezes.
09 Deus é actor de filmes porno. Saltam-lhe para cima novas, velhas, feias, bonitas, gajas, gajos... tudo o que lhe apeteça, tudo o que lhes apeteça. Deus é deus, anda sempre sem preservativo e não apanha sida.
10 Deus, como é óbvio não se apaixona.
11 Um gajo que é gajo nem sempre consegue ser deus e trinta e três é múltiplo de onze.
12 Há gajos ateus pelo caminho. Esses usam preservativo, apesar de isso não ser relevante para a história.
13 Luis é humano. Tem segredos, paixões, fraquezas, defeitos, virtudes, cheira mal quando transpira, fica doente, também é birrento quando calha, fuma como um animal.
14 Luis também tem por vezes vontade de chorar mas já não é nenhum fedelho.
15 Na noite escura de Lisboa, a contra luz e em negativo, percorrem-se muitas vezes os quelhos deste país.
16 Bebe-se com velhos desdentados, cheira-se o fumo das febras nas festas, ouvem-se os rafeiros a ladrar ao fundo, mergulha-se nu na água gelada de um rio qualquer num sítio qualquer.
17 Isso de poder sair de casa, percorrer quilómetros em segundos e dormir no leito próprio é coisa mais própria de deus.
18 Há gajos ateus que acreditam nisso.
19 Vive-se devagar. Um salário em cada mês. Um aniversário em cada ano. Uma foto em cada rolo.
20 Há excepções. Por exemplo há quem tenha umas férias cada três meses.
21 Não há no entanto grande tempo para deixar aos fedelhos mais do que aquilo com que nos receberam. Crescem rápido.
22 Vinte e dois também é múltiplo de onze.
23 E em três tempos passam de fedelho a puto, de puto a ganapo, de ganapo a rapazola, de rapazola a manfio e de manfio a gajo.
24 Voltando ao vinte e um, tudo aquilo aparentemente devagar. Um salário em cada mês. Um aniversário em cada ano. Uma foto em cada rolo.
25 Quem andou não tem para andar. Há um pouco de mistério nesta frase.
26 Isto é triste? Não necessariamente.
27 Pedira-me tudo isto para um aniversário.
28 Trinta e três linhas pelos meus trinta e três anos.
29 A responsabilidade é muita, ainda que a encomenda seja curta.
30 Escolhe o que te dá prazer, como se fosse uma velha garrafa de vinho.
31 Planeia fazê-lo como se convidasses os amigos para uma jantarada.
32 Disfruta desse prazer como se abrisses a velha garrafa nessa jantarada.
33 Adormece com um sorriso nos lábios. É que isto está tudo ligado.


| L | na Sede | Gaia | Novembro de 2005 |