quinta-feira, setembro 30, 2004

Portugal hoje

No final do séc. XV, ainda no início do processo de dominação colonial do hemisfério sul, os arquipélagos ibéricos do atlântico mantinham uma importância estratégica para as rotas marítimas que passariam a assegurar a ligação com os recém-colonizados territórios africanos e americanos. As pequenas ilhas garantiam abrigo e mantimentos aos navios que faziam o triângulo escravos – ouro, prata e açúcar – metrópole. Evidentemente nada disto garantia o desenvolvimento dessas ilhas - tão pouco dos reinos católicos como se confirmaria tempos mais tarde.

Numa curiosa coincidência, no início do séc. XXI, naquilo que é o início de uma nova dominação colonial do planeta, o pequeno arquipélago dos Açores foi bafejado pelo acaso de acolher os mais poderosos líderes mundiais. Um par de idiotas anglófonos. Da península (das antigas potências mundiais) vinha um terceiro convidado e um sorridente anfitrião. Um par de palonsos esforçando-se por aparecer na fotografia. De novo as longínquas ilhas davam segurança e poder. Não como protecção dos elementos ou das enormes distâncias atlânticas. Os quatro engravatados apenas se escondiam dos seus concidadãos.

Evidentemente nada disto garante o desenvolvimento dessas ilhas. Ali ao lado, na freguesia de Rabo de Peixe, a mais pobre freguesia portuguesa e certamente uma das mais pobres da Europa “civilizada” a vida continua normalmente. Sem grandes diferenças daquela que seria a vida no final do séc. XV. Relembrar o velho provérbio marxista - «um povo que oprime outro, não é um povo livre» - pouco conforto dará a iraquianos ou a açoreanos. Aliás porquê falar em tudo isto? Saberão os pescadores açoreanos onde é a Babilónia? Saberão os famintos de Bagdade onde é a ilha Terceira?

As ilhas são apesar de tudo um bom sítio para se viver. Há sol, bom peixe e bandeiras à janela.

De longe a longe lá aparecem câmaras de televisão com ligações satélite.


| Os putos de Rabo de Peixe | S. Miguel | Açores | Junho de 2003 |

terça-feira, setembro 28, 2004

Aos saltos para trás.

Há poucas coisas capazes de mobilizar massivamente um país. Historicamente esses momentos representam grandes saltos. Pontos de ruptura numa continuidade inerte. Será talvez necessário reformular a teoria. Empiricamente 2004 assim obriga.

Este ano que vivemos tem por isso muito interesse. Perdeu-se poder de compra, temos o IVA mais alto das redondezas, os hospitais estão a meio caminho da privatização, as universidades a tinir, escolas sem professores. As matas já não ardem porque já arderam. No entanto este foi um ano de grandes festejos. Unânimes, massivos, apaixonados e ubíquos. Os portugueses encontraram-se nas ruas a festejar tudo aquilo que não tinham.

Três meses depois o ministro das finanças explica em tom solene num directo televisivo aquilo que já todos perceberam: o orçamento de estado é como os orçamentos domésticos; gasta-se mais do que o que se tem e por isso há que cortar nas despesas supérfluas. P.ex. em casa cortar na mesada das crianças para se poder continuar a ter televisão por cabo. O que conta são as aparências. Bons carros, belos estádios, grandes centros comerciais e os desempregados fora dos bairros sociais. Desempregados? Que desempregados?

Há sol, boa comida e bandeiras à janela. Isso sim.
:)


| Covas | V.N. de Cerveira | Agosto 2004 |

segunda-feira, setembro 13, 2004

Empurre, sff.

A propósito de um monólogo paralelo

Tudo corre bem, sim. Há sol e boa comida. As pessoas cruzam-se sorridentes num país solarengo. Trocam-se palavras afáveis, conversa-se agradavelmente sobre a rotina de cada um. O emprego, as férias, os filhos, o tempo. As gentes são simpáticas, bem dispostas e animadas. Tudo corre bem, sim. Há sol e boa comida. Dois em cada 10 portugueses encontram-se em "risco de pobreza" segundo o relatório da agência Habitat das Nações Unidas, o segundo valor mais alto da União Europeia.

Tudo corre bem, sim. Há sol, boa comida e bandeiras à janela.


| Guarany | Porto | Março de 2004 |

domingo, setembro 05, 2004