sexta-feira, junho 30, 2017

Princípios Simples XXXIII

Tudo é temporário.

| portugal | verão de 2016 |

quarta-feira, junho 28, 2017

A idade, essa rameira.

Ao contrário do que anunciam os conservadores, a idade não pesa na interpretação dos textos clássicos de Marx, Mandel ou Antero de Quental.

Pesa sim naquilo que se pensa sobre os ídolos da adolescência. Aos 16, Ian McCulloch o mais brilhante, inspirado e elegante músico da galáxia. Aos 22, Ian McCulloch é fixe. Aos 32, Ian McCulloch... Ian... ah, sim. Aos 40, Ian McCulloch - caraças homem - pára de beber, vê lá essa pança ridícula, tira os óculos de sol e olha para o espelho. Já não tens 20 anos, essa cena toda de rock star é simplesmente patética.

Por outro lado, Tim Booth, podes aparecer para jantar sempre que quiseres. Mando-te a morada assim que estiveres para aí virado.

| o menino mijão | bruxelas | agosto 2015 |

quinta-feira, junho 22, 2017

A ludopatia da catarse

Esta é uma história verdadeira. Como o Fargo.

Morreu há cerca de 17 anos um grande escritor. Tinha, como todos os homens, os seus defeitos. Mas à medida que os anos passam, tudo fica para trás e 17 anos depois, qualquer homem é sobretudo virtudes. Até que outros tantos anos depois mais ninguém se lembre dele.

Foi então 17 anos depois que, um daqueles jornalistas dignos de dar nome à profissão, durante as suas horas vagas, se dedicou longamente a meter-se naquela cabeça e a tentar recriar um pouco da sua vida. Havia demasiadas pontas soltas e direcções contraditórias.

Através de uns amigos mais próximos, ficou a saber-se que ele era apaixonado por Xadrez. Tinha um nível médio para um jogador ocasional e jogava regularmente on-line. No final dos seus jogos, 10 ou 15 minutos após o seu término, perdidos ali naquele servidor, dedicava-se a escrever sobre a sua própria vida, dentro da zona dos comentários ao jogo que tinha acabado de jogar.

E era assim que, sem que ninguém o pudesse saber, naquele confessionário ao ar livre, discorria sobre os seus ódios secretos, os seus problemas cardíacos, a educação dos seus filhos e a sua vida íntima. Na certeza que nunca mais ninguém voltaria a olhar para aquelas partidas e, ainda que o fizesse, não percebesse nada de português. Ou ainda que o fizesse que não fosse capaz de os associar a si. Ou ainda que o fizesse que não lhes desse uma sequência cronológica.

E foi assim que, 17 anos depois, ficamos a saber que a sua mulher tinha dormido com um cozinheiro libanês, que ele achava insuportável os dirigentes do seu partido, que os seus filhos ultrapassaram doenças graves, que tinha fantasias com actrizes de novelas brasileiras. Tinha escrito também alguns poemas secretos a uma amiga de infância com quem se havia cruzado nos últimos anos de vida.

Mas estes eram medíocres e não mereciam ter sido descobertos. Da mesma forma que as suas partidas de Xadrez, cheias de erros elementares.

| pinacoteca de brera | milão | 2016 |

quinta-feira, junho 15, 2017

Mas o que é isso...?

Uma rede social, segundo o dicionário da academia de letras de Tiblisi, não tem nada a ver com o que se segue.
É um homem sentado numa sala onde brincam crianças, de olhos pousados no vazio, incapaz de manter a cabeça vertical.
É um bando de idiotas a destruir uma estátua no meio de uma cidade.
É um adolescente que nunca leu Júlio Verne, nem consegue ler 3 parágrafos consecutivos de um texto.
É alguém que procura rapidamente no Google o significado do número 42, quando percebe as inexplicáveis gargalhadas que ouve de um grupo de velhos sentados ao seu lado na mesa de um café.
É um retrato de alguém cujo comentário adequado seria «estás horrível, apaga isso e da próxima vez não faças esse sorriso idiota», comentado com «estás lindo».
É uma pessoa só, deitada no seu sofá, incapaz de apreciar em silêncio um filme de duas horas sem que se interrompa voluntariamente desse prazer.
São dois amigos que não jantam juntos há meses, anos, décadas.
São deputados cheios de vaidade à frente do seu telefone.
É um concerto transmitido em directo em 4G para meia dúzia de likes.
São dois carros a alta velocidade no meio de uma cidade que se espetam contra o lancil de um passeio.
É um doido à solta num quarto de hospital, enquanto um desgraçado carrega na morfina para dormir melhor.
É um homem a cagar sossegado enquanto vê fotografias de vedetas americanas.
É um medo de um exame médico que nos toma o corpo e do qual nunca falaremos a ninguém.
São 4 pessoas caladas sentadas à mesa com os seus telefones à frente.
É usar 300 palavras de vocabulário pa se xprimir, e screver lol no fim de cada frase, n'é? lol.
É ninguém saber do que se trata, és apenas tu e eles, que eu cá não percebo nada de georgiano e apesar de não parecer, ainda não estou bêbado. Só se estivesse é que o diria. Hã?


| Zelândia | maio 2017 |

sábado, junho 10, 2017

quinta-feira, junho 08, 2017

2017, o ano que passou.

Passou 2017. Ainda não passou exactamente, mas olho para o calendário e vejo que não está longe o fim.

Passou 1984 há muitos anos atrás. Estava em Darque de férias com o resto da canalhada. Discutíamos entre nós para onde gostaríamos de ir viver enquanto adultos. Podíamos estar horas a discutir se Inglaterra era melhor que França ou se alguém poderia usar como resposta "América". Era relativamente evidente que ninguém podia responder América. Qualquer outra resposta era vagamente plausível mas nem uma criança acreditaria que alguém poderia algum dia ir de Darque para a América. Seria mais plausível querer ser astronauta.

O futuro estava muito longe mas a morte estava mesmo ali ao virar da esquina sem que ninguém desse por ela. Sem qualquer supervisão íamos para o rio Lima de manhã e de tarde. Nem adultos, nem coletes, nem muito juízo. Atirávamos torrões, apanhávamos camarões e deitávamos a mão àqueles que se atrapalhavam porque mal sabiam nadar. Era preciso cuidado quando a maré subia: a corrente puxava e certas ilhotas ficavam isoladas. Havia um puto mais velho, com 13 ou 14 anos que pastava as vacas ali no meio. Certo dia uma das vacas não conseguia sair dali e lá fomos todos em bando a correr para assistir impotentes ao desespero do rapaz.

Passou quase 2017. Não faço ideia onde está um único daqueles meus companheiros. Na altura eram os meus melhores amigos. Não me lembro de um único nome. Lembro de me atirar à água para lhes dar a mão. Lembro de pensar que ficaríamos ali os dois enquanto bebia demasiados golos de água do rio Lima com os olhos abertos na água castanha. Lembro-me de a minha mãe me dar 100$ que gastei em chicletes que custavam 1$ cada. Lembro-me de achar que a minha mãe não estava a falar a sério quando me disse que podia fazê-lo. Lembro-me que o homem da mercearia de Darque me vendeu as chicletes sem ter a certeza se o deveria fazer. Lembro-me de ser pasto dos mosquitos ao final do dia.

Nunca pensei que algum dia pudesse ter saído de Darque para o mundo. Nunca pensei que pudesse gostar tanto da minha terra tão bonita (a minha mesmo, não Darque - acho que só voltei a Darque para ir a um hipermercado. Aquilo agora é uma terra a sério). Nunca pensei que me pudesse custar tanto deixá-la para trás. Nunca pensei pensar que deixá-la só podia ter sido o melhor que me podia ter acontecido.

Em 2017 não é preciso esperar que nos cheguem as notícias através do Jornal da terra, trazido em mão por alguém que nos visita. Pode-se saber tudo abrindo o Facebook, assistir ao banal e perguntando-se como pode tanta gente perder tanto tempo com tão pouco. Imaginar o principezinho passeando-se pelo meio daquilo tudo a repetir como um bêbado cambaleante: "o essencial é invisível ao olhar...". Saber que ninguém na verdade quer saber do Convento de Cristo, nem estariam dispostos a dar 50€ do seu salário para o salvar. Saber que ninguém quer saber de ninguém para nada, que todas as fotos patéticas são bajuladas. Que os vídeos engraçados são uma montra de quão engraçada é a mediocridade geral. Que poucos defenderiam o Salvador como colega de trabalho se não fosse agora o Ronaldo da Eurovisão.

E depois ouvir lentamente o Mark Kozelek escrever sobre a minha terra (a tal que não é Darque).... E depois emocionar-me ao saber que ele fala verdade quando diz que quer as suas cinzas espalhadas no Douro... E depois fazer um sorriso amarelo e pensar que ele não percebeu nada do assunto... E daqui a umas semanas voltar ao Facebook para ter a certeza que não ando a perder nada e confirmar que não. Não ando a perder nada e que só se perdeu aquilo que não se fez. Como daquela vez que, cheio de pudor, não beijei alguém na boca. E essa mulher já morreu. E saber que ninguém no Facebook saberá disso nem quer saber dessa merda para nada. Nem eu na verdade.

E apreciar uns poucos amigos. Aqueles que não precisam de likes. Rir com o seu sarcasmo. Ler as palavras simples e sinceras de quem gosta de nós e saber que isto no fim de tudo se resume a coisas muito simples tão difíceis de explicar. E para isso não é preciso Facebook para nada. E guardar escondido aquele medo de não me lembrar do nome de alguém, como se não me lembrasse de mim próprio.

|Museu Neanderthal | Mettmann | Abril 2017 |

sexta-feira, março 31, 2017

As asinhas ficaram em casa.

Esta manhã, na habitual tragédia viária em que se transformaram as ruas de Bruxelas, à saída de um cruzamento, um carro aguarda a sua vez para poder entrar na rue de la Loi. Atrás dele outro carro. À frente dele outro carro. Atrás daquele outro carro, um autocarro e lá dentro um motorista poeta. Ou não exactamente, antes poeta-melómano.

Aquele tempo de espera na bicha, aquele compasso lento e doentio é algo que é mais do que expectável. É um fado diário. Sentado no seu posto de trabalho, o motorista sabe o que o espera: semáforos verdes e viaturas com um único ocupante. E tempos de espera.

Ainda assim, perante tudo aquilo o motorista decide tocar a corneta do autocarro. Impávidos os carros não reagem. Mas na sua cabeça o motorista imaginou que aquela corneta soaria para os peões que pedonavam como se fosse o último álbum da Enya e não como aquilo a que soou: o barulho de uma besta atrás de um volante.

Mas imaginou ainda melhor: lentamente e ao som da música, asas ligeiras, leves, claras e felpudas, abrir-se-iam lentamente dos lados de cada um dos automóveis à sua frente, permitindo assim que a rue de la Loi se transformasse no habitat de bandos de pássaros futuristas transportando formiguinhas a caminho das suas 8 horas diárias. A música tocando continuamente enquanto o fluído avícola o libertava da pena de conduzir diariamente, sob uma nunca nomeada tortura, aquela pequena máquina chamada autocarro.

Ninguém lhe enfiou uma bofetada nas ventas. Bastou que o semáforo voltasse a ficar de novo vermelho.

| hora das sandes | bruxelas | bélgica | 2017 |