quarta-feira, fevereiro 15, 2012

Bom, talvez não seja bem assim...

Era aos domingos de manhã, quando ainda estava frio e o silêncio da aldeia era apenas cortado pelo soar dos sinos, que a minha avó entrava pelos quartos dentro, zangada e furiosa contra mim, a minha irmã e os meus primos. A razão para semelhante bulha era muito simples: daí a 15 minutos havia missa e ninguém estava ainda pronto e a bater a continência. Lembro-me que a segunda razão para bulha, tinha a ver com o facto de se tomar o pequeno-almoço. A missa era para ser apreciada em jejum e o facto de se aconchegar o estômago com pão torrado e leite morno tornava a mais pequena criança num vil pecador. Desta história tirei várias conclusões mas uma é muito simples: quando se impõe alguma coisa a alguém recorrendo apenas à força física, os resultados imediatos podem aparecer mas a longo prazo serão provavelmente de sentido contrário.

Há muitos anos atrás, a escola inteira ficou em pé de guerra. Todos deveríamos munir-nos de uns toscos óculos azuis e vermelhos (que sempre me fizeram lembrar o plástico envolvente do queijo flamengo) para poder ver o monstro da lagoa negra a três dimensões. Em menos de nada, recorrendo a um objecto tão trivial, todas as salas do país iriam transformar-se no mais puro ambiente de ficção científica. Todos seríamos transportados 100 anos para o futuro. Os nossos tubos de raios catódicos iriam deixar-nos a um pequeno passo da video-conferência tridimensional, do tele-transporte ou doutra coisa qualquer que a imaginação permitisse. A transmissão do filme deve ter tido tanta audiência como o final do Roque Santeiro. No entanto nada daquilo funcionava como anunciado. As três dimensões não apareceram em lado nenhum, o filme era um pouco menos que miserável, toda a experiência se resumiu a uma mobilização social grotesca cujo único resultado foi a venda de óculos de papel com plástico azul e vermelho sem qualquer utilidade. Mas desta história tirei várias conclusões, uma das quais muito simples: quando anunciam coisas que vão para lá do que é evidente e razoável, o mais provável é ser uma aldrabice.

Podia juntar as duas histórias para falar de ateísmo e essa associação seria até óbvia, mas não, não é isso.
Eu quero juntar as duas histórias para falar da Grécia. Já falei. É, é apenas isto.


| parque do woluwe | bruxelas | fevereiro de 2012 |

segunda-feira, fevereiro 06, 2012

O pulôver que trazia um homem para o trabalho.

Tinha reparado inicialmente na sua barba mal feita. Não era sequer uma barba, era apenas aquele desleixo de 4 dias. Evito fazer juízos de valor com quem comigo se cruza, mas não pude evitar pensar que com aquela idade, com aquela barriga e com aquela fronha tão feia, um ar tão desleixado fazia do figurão um triste traste.

Certo dia, sentado ao meu lado, pude observar que pequenos detritos se acumulavam na sua face. Evidentemente não tinha lavado as ventas de manhã. Ora eu, portuguezinho e asseadinho, apesar de evitar fazer juízos de valor com quem comigo se cruza, não pude deixar de pensar na raça suína e no seu modo de vida.

Até que há umas semanas percebi que o homem trazia em dias consecutivos o mesmo pulôver. Mas eis que o pulôver o acompanhava permanentemente. Dias depois, fins de semana passados, o mesmo pulôver, sempre o mesmo. Reconheciam-se pequenas manchas, vestígios de comida e alguns cabelos brancos.

Até que pude então perceber que não era o velho figurão que se fazia acompanhar do pulôver, mas o contrário.

Mas como era um pulôver simples e de família modesta, apesar de há muito andar à procura de outrem que o vestisse, ainda não o tinha conseguido fazer. E era assim que olhava para mim, como que pedisse clemência, desejando libertar-se daquele traste barrigudo.

Teria de bom grado pegado num fósforo para o libertar da agonia mas creio que isso poderia libertar gases tóxicos e eu, sou contra os gases tóxicos desde pequenino...



| bruxelas | 15 de outubro de 2011 |