Morreu há cerca de 17 anos um grande escritor. Tinha, como todos os homens, os seus defeitos. Mas à medida que os anos passam, tudo fica para trás e 17 anos depois, qualquer homem é sobretudo virtudes. Até que outros tantos anos depois mais ninguém se lembre dele.
Foi então 17 anos depois que, um daqueles jornalistas dignos de dar nome à profissão, durante as suas horas vagas, se dedicou longamente a meter-se naquela cabeça e a tentar recriar um pouco da sua vida. Havia demasiadas pontas soltas e direcções contraditórias.
Através de uns amigos mais próximos, ficou a saber-se que ele era apaixonado por Xadrez. Tinha um nível médio para um jogador ocasional e jogava regularmente on-line. No final dos seus jogos, 10 ou 15 minutos após o seu término, perdidos ali naquele servidor, dedicava-se a escrever sobre a sua própria vida, dentro da zona dos comentários ao jogo que tinha acabado de jogar.
E era assim que, sem que ninguém o pudesse saber, naquele confessionário ao ar livre, discorria sobre os seus ódios secretos, os seus problemas cardíacos, a educação dos seus filhos e a sua vida íntima. Na certeza que nunca mais ninguém voltaria a olhar para aquelas partidas e, ainda que o fizesse, não percebesse nada de português. Ou ainda que o fizesse que não fosse capaz de os associar a si. Ou ainda que o fizesse que não lhes desse uma sequência cronológica.
E foi assim que, 17 anos depois, ficamos a saber que a sua mulher tinha dormido com um cozinheiro libanês, que ele achava insuportável os dirigentes do seu partido, que os seus filhos ultrapassaram doenças graves, que tinha fantasias com actrizes de novelas brasileiras. Tinha escrito também alguns poemas secretos a uma amiga de infância com quem se havia cruzado nos últimos anos de vida.
Mas estes eram medíocres e não mereciam ter sido descobertos. Da mesma forma que as suas partidas de Xadrez, cheias de erros elementares.
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