sábado, dezembro 10, 2005

Sonho de uma noite de S. João

Talvez não saberás que fiz, este ano, trinta anos. Não é que seja significativo por si só. Mas é suficiente para que não me recorde de quando foi a primeira vez que votei. Seria fácil descobri-lo, mas não é isso o que me atormenta hoje. Esta noite tornou-se claro que nunca em toda a minha vida pude votar em ti. Teria-o feito sem hesitar, como o farei em Janeiro. Não que isso seja sequer para mim algum fetiche particular. Nada que transcenda a natureza material das pessoas. Nós somos só pessoas. Só todos juntos é que somos outras coisas que não só pessoas.
Quero-te transmitir um pouco mais do que um abraço, tal como recordo ter-te dado em 1999. Na mesma praça da Batalha por onde passo todos os dias. Agora à noite, porque de dia só lá vou para trabalhar. Como se à noite tivéssemos uma liberdade de falar que se perde nas normas do quotidiano. Onde não nos podemos abraçar. Ou onde não nos vamos encontrar por não ser aquele o nosso país. Nessa noite sabia que só podia dar o meu abraço, como já tinha dado tantas vezes os meus braços. Não poderia dar o meu voto. Não que isso seja para mim um fetiche particular, repito-o. Os votos são papelitos que se metem numa frincha.
Esta noite, hoje, quero abraçar-te daqui do Porto. Depois de tantos anos em que passei a imaginar um país onde de dia se pudesse viver como se vive à noite, onde as palavras se digam como se as pudessemos dizer como as sentimos, onde os abraços possam surgir com mais naturalidade que os comentários de circunstância sobre o estado do tempo.
Há para aí um tipo medíocre, ainda que não pareça, que pensava que podia aparecer, fazer meia dúzia de comentários sobre o estado do tempo e comer-nos a todos de cebolada. Como um zombie, já derrotado nas eleições, mas que ainda mal morto esbraceja para morder o último pescoço do último português lúcido. Tenho a certeza que há neste país milhares de pessoas que, com todo o gosto, o contrariariam, o denunciariam e em desespero talvez até o achincalhariam. Nenhuma dessas pessoas o poderia certamente abraçar, como eu não seria capaz sequer de lhe tocar.
A ti te agradeço por entre tantos milhares de portugueses, teres sido capaz de, numa noite fria, vestires aquele blazer castanho horrível, e te teres disposto a apertar-lhe a mão só para lhe dizeres nas ventas que os portugueses não precisam de palmadinhas nas costas dos banqueiros, dos srs. drs professores de finanças e de toda a sua infinita sapiência de funcionários administrativos medíocres.
Devo dizer-te no entanto que falaste menos 9 segundos do que o zombie. É uma regra de sucesso que poderás usar em debates futuros. Um zombie pode esbracejar sempre muito. Os zombies, é sabido, são sempre muitos e parece sempre que não há esperança para quem não foi mordido. Mesmo num filme de terror há que manter alguma calma de espírito. Os zombies são coisas que podem ser vencidas por qualquer um de nós. Tenhamos todos essa lucidez.

Em ti votarei pela primeira vez na vida. Com toda a gana.
Um abraço sentido,


| S. João | 23 de Junho de 2005 | Av. dos Aliados |

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